domingo, novembro 29, 2009

TÁ TUDO CERTO, MÃE (SÓ ESTOU SANGRANDO)

(It´s Alright, Ma, I´m Only Bleeding)

Ao raiar do meio-dia, a escuridão
Assombra até a lâmina feita à mão,
A colher de prata, o bebê e o balão,
Eclipsa a lua e o sol no chão,
Não adianta nem buscar razão:
Você sabe que não está entendendo.

Ameaças agudas lançadas ao ar,
Declarações suicidas a se rasgar,
Porta-voz de ouro-de-tolo a cornetar
Palavras gastas que só vêm provar:
Quem não está nascendo por lá
Está ocupado ali morrendo.

O pajem da tentação sai pela janela,
Você vai atrás e se acha em guerra,
A cascata piedosa rosna e berra,
Você quer berrar, mas não é mais aquela
Pessoa que achava que você era,
É só mais um gemendo.

Então se um ruído esquisito
Ressoar aí no seu ouvido
Tá tudo certo, mãe, é só meu lamento.


Alguns cantam glória e outros, derrota,
Grandes ou não, razões sempre próprias
São vistas nos olhos daqueles que forçam
E arrastam as pessoas pra serem mortas
Enquanto outros dizem: somente o ódio
Deve ser odiado.

Palavras cínicas disparam em uivos
De deuses humanos criando seus mundos
Com armas de brinquedo feitas pra adultos
E Cristos coloridos que brilham no escuro,
É fácil perceber, sem procurar muito:
Hoje nada mais é sagrado.

Pregadores pregam um destino infeliz,
Professores professam o saber da raiz,
O mapa da mina no quadro de giz,
A bondade se esconde na própria matriz
Mas até o presidente de um grande país
Às vezes precisa andar pelado.

E se a regra do jogo está fora de alcance
É só se desviar de quem faz o lance
E tá tudo certo, mãe, dou conta do recado.


Propagandas te levando a mal,
A pensar que só você é que é o tal
Que pode mais que qualquer mortal
E que merece o mais sensacional
Enquanto isso a vida vai normal
E você nem vê.

Você se perde e se encontra de novo,
Súbito quer ser um pouco mais corajoso,
Sozinho você vai pra longe do povo
Quando uma voz em tom cavernoso
Surpreende o seu ouvido em repouso
E diz achar mesmo que achou você.

Uma pergunta bate à sua porta
Mas você sabe que não tem resposta
Pra assegurar que algo ainda importa,
Pra que a verdade seja toda exposta:
Não há coisa ou pessoa, viva ou morta
A quem você deva pertencer.

E apesar dos senhores fazerem os planos
Aos homens sábios e aos insanos
Nada me obriga, mãe, a corresponder.


Aos que precisam bater continência
À lei que desprezam em sã consciência
E odeiam o que fazem, não têm paciência,
Invejam quem é livre na sua ausência,
Cultivam as flores dessa experiência
Somente como algo a investir.

Enquanto outros, batizados em princípios
A laços estreitos, ideias e partidos,
Clubes restritos disfarçam contidos,
Aqueles que escondem o senso crítico
Só falam em quais devem ser os ídolos
E depois “Deus abençoe aquele ali”.

Enquanto quem canta com a língua em chamas
Gargareja num coral de falsos dramas,
Torto pela sociedade e suas tramas
Não luta pra tirar os seus pés da lama
Mas sim pra arrastar à mesma lama
Todos que passem por ali.

Mas não quero mal nem aponto defeito
A qualquer sujeito que viva sujeito
E tá tudo certo, mãe, se eu fizer ele sorrir.


Velhas senhoras observam casais,
Limitadas no sexo, julgam-se as tais,
Desprezam baseadas em falsas morais
E a grana não fala, xinga e grita mais
Obscenidade em todos os canais,
Propaganda é isso aí, hipocrisia.

Enquanto defende-se o que nem se vê
Com orgulho assassino, e é assim que
As certezas estupidificam você,
E aos que não conseguem nem perceber
A verdade natural de que vão morrer
Deve ser bem solitária a vida.

Meus olhos colidem em cheio em cheios
Cemitérios, deuses vazios, não creio
Na mesquinhez que se impõe no meio,
Vou de ponta-cabeça, algemado, sem freio,
Catando cavaco e enfim, já cheio,
Digo O.K., você disse a que veio,
Tem outro lance na partida?

E se vissem o que minha mente imagina
Provavelmente me condenavam à guilhotina
Mas tá tudo certo, mãe, é a vida, é só a vida.


Bob Dylan

versão brasileira: Ivan Justen Santana

sábado, novembro 07, 2009

CARMINA I, 4

SOLUITUR ACRIS HIEMS GRATA UICE UERIS ET FAUONI
__TRAHUNTQUE SICCAS MACHINAE CARINAS
AC NEQUE IAM STABULIS GAUDET PECUS AUT ARATOR IGNI
__NEC PRATA CANIS ALBICANT PRUINIS
IAM CYTHEREA CHOROS DUCIT UENUS IMMINENTE LUNA
__IUNCTAEQUE NYMPHIS GRATIAE DECENTES
ALTERNO TERRAM QUATIUNT PEDE DUM GRAUIS CYCLOPUM
__VOLCANUS ARDENS UISIT OFFICINAS
NUNC DECET AUT UIRIDI NITIDUM CAPUT IMPEDIRE MYRTO
__AUT FLORE TERRAE QUEM FERUNT SOLUTAE
NUNC ET IN UMBROSIS FAUNO DECET IMMOLARE LUCIS
__SEU POSCAT AGNA SIUE MALIT HAEDO
PALLIDA MORS AEQUO PULSAT PEDE PAUPERUM TABERNAS
__REGUMQUE TURRIS O BEATE SESTI
UITAE SUMMA BREUIS SPEM NOS UETAT INCHOARE LONGAM
__IAM TE PREMET NOX FABULAEQUE MANES
ET DOMUS EXILIS PLUTONIA QUO SIMUL MEARIS
__NEC REGNA UINI SORTIERE TALIS
NEC TENERUM LYCIDAN MIRABERE QUO CALET IUUENTUS
__NUNC OMNIS ET MOX UIRGINES TEPEBUNT

Dissolve-se o áspero inverno, voltando a estação agradável,
__e secas se arrastam as quilhas dos barcos;
já não se aconchegam no estábulo o gado e ao fogo o campônio,
__nem prados alvejam com brancas geadas.

Já Vênus Citérea os coros conduz, sob a Lua alta,
__e junto das Ninfas as Graças tão belas
batem os pés alternados na terra, enquanto aos Ciclopes
__o ardente Vulcano visita nas forjas.

Agora convém elegante envolver a cabeça com o verde mirto
__ou flores que brotam das terras aráveis;
agora também é mister nas sombrias florestas fazer sacrifícios
__ao Fauno, quer queira cordeiros ou mesmo cabritos.

A pálida Morte marcha igualmente em tavernas de pobres
__e em torres de reis. Ó Sesto feliz,
a vida tão breve proíbe erigir esperanças extensas;
__jjá oprimem-te a Noite, as almas das fábulas

e a fúnebre casa Plutônia, aonde tão logo chegares
__não sortearás com teus dados os goles de vinho
nem admirarás o suave Lícidas, por quem ora arde
__toda a juventude e em breve as virgens ferverão.


QUINTUS HORATIUS FLACCUS
Ivan Justen Santana

terça-feira, novembro 03, 2009

EDGAR WILLIAM ALLAN BLAKE POE

Edgar Allan Poe, investido de corvo,
Encontra William Blake em pele de tigre:
A este a pelugem empresta um ar de estorvo
E àquele a plumagem negra não denigre.

Assim figurei-os na imaginação
E um, só por ter visto o outro, se embeveceu
Pois ambos pensaram, cheios de razão:
“Meu poema-bicho é mais animal que o seu!”