terça-feira, agosto 09, 2016

O GALO DE OURO

Poema-conto de Alexandre Pushkin (1799-1837)
Versão brasileira: R. Magalhães Jr (1907-1980)
Seleção e transcrição: Wagner Schadeck
Revisão e preparo: Ivan Justen Santana


Num reino de alto renome,
Do qual não direi o nome,
Viveu um Czar altaneiro
Por nome Dadon Primeiro.
Fero, duro, tudo ousava
E aos vizinhos saqueava.
Mas, minguada com a idade
Sua belicosidade,
Quis então o velho Czar
Das guerrilhas descansar.
Os vizinhos, atrevidos,
Com batalhões aguerridos,
— Como ódio velho não cansa —
Buscaram tirar vingança.
Dadon seu reino perdia
Ou tropas mil manteria...
Seus capitães não dormiam,
Porém às vezes fugiam…
Se era o sul fortificado,
Era o resto vulnerado…
Se era uma brecha coberta,
Já numa praia deserta
Desembarcava o inimigo!
Czar Dadon, ante o perigo,
Quase até mesmo chorava!
Não dormia, — cochilava,
Num viver acabrunhante!
Foi, por isso, a um nigromante
Um velho eunuco pedir
Que viesse o Czar assistir.
O Feiticeiro assentiu
E com o eunuco partiu
Para o palácio do Czar…
Na corte, logo ao chegar,
Tirou de um baú de couro
Um pequeno galo de ouro.
“Este galo — disse o mago —
É a proteção que trago
Ao amado e nobre Czar.
Num poste deve ficar
Bem alto, sobre a cidade,
Dominando a imensidade
Do reino que é vosso orgulho,
Sem ouvir nenhum barulho.
Na altura em que ficará
Este galo cantará
Apontando a direção
Donde quer que haja traição,
Donde a perfídia transpire
Ou o inimigo conspire!”
O mago do galo de ouro
Teve em rublos um tesouro
Mas foi apenas o prólogo:
“— Formula um desejo, astrólogo”,
 Disse o Czar, “e eu, como amigo,
A realizá-lo me obrigo...”

No alto poste colocada,
Ficou a ave bem vigiada,
E, se o perigo apontava,
Como que o galo acordava
E, então, as asas ruflando,
Era de vê-lo cantando,
Co-co-ró, co-co-ri-có!
E indicava um lado só
Por onde vinha o inimigo…
Para Dadon o perigo,
O sobressalto era findo:
Não o pegavam dormindo!

Um ano… Outro ano passou,
E o galo não mais cantou…
Mas um dia, de repente,
Ao Czar Dadon um tenente
Diz: “Acorde, majestade!
O perigo o reino invade!
Venha, venha sem demora!”
“Afinal, que é isto agora?”
Na cama se espreguiçando,
Indaga o Czar gaguejando.
Diz o tenente: “É que o medo
Domina! Senhor, hoje cedo
O galo de ouro cantou!”
Para o galo o Czar olhou
E o viu, no poste, a indicar,
Cantando, o lado do mar.
“Depressa! O inimigo investe!
Cavalheiros! Rumo ao Leste!”
O herdeiro do Czar, valente,
Das tropas saiu à frente.
Como o galo se calou,
Dadon então repousou…

Os dias correram, mágicos,
Sem rumores ou sons trágicos.
Afinal, quem venceria?
O Czar Dadon não sabia…
Mas… Eis o galo cantando
Outra vez… E eis, pois, marchando
Nova tropa, em garbo e brilho,
Tendo à frente o outro filho
Para socorrer o irmão.
Como na outra ocasião,
Dando mostras de contente,
O galo quedou silente.
Más notícias não chegaram…
Oito dias mal passaram,
Já canta o galo e, destarte,
Eis que nova força parte!
Quem a conduz, sobranceiro?
É o Czar Dadon Primeiro!

Noites, dias, ao mormaço,
Marcha, morto de cansaço,
Dadon procurando, em vão,
Uma vaga indicação
Quanto ao campo de batalha…
Nem vestígios de metralha
Nem destroços! Coisa estranha!
Mas ao galgar a montanha
Alta, erguida junto ao mar,
Que veria o nobre Czar?
Toda em seda adamascada
Ali há uma tenda armada…
Reina um silêncio funéreo
Como em vasto cemitério…
Jaz, ao lado, a tropa morta…
Investe o Czar para a porta
Da tenda… E cheio de horror,
Seus filhos, com estupor,
Vê, a ferro traspassado
Um pelo outro, lado a lado!
No solo, sobre o gramado
O sangue real derramado
Nem coagulara ainda…
De Dadon a dor infinda
Leva-o a falar assim:
“Filhos! Filhos! Ai de mim!
Meus falcões, por ínvia trilha,
Caístes numa armadilha!”
Todo o exército chorou…
E o vale, o monte, a devesa,
Vestiu luto a natureza!
Mas da tenda eis se avizinha,
De Samarcândia a Rainha,
— Pomo da discórdia — e, airosa
Estende a mão cor de rosa,
Num gesto de enfeitiçar
A Dadon, o velho Czar,
Que ficou trêmulo, olhando
Para ela, não mais pensando
Nos seus dois filhos defuntos.
Ele a mão beijou-lhe e, juntos,
Na tenda real penetraram…
Lado a lado os dois cearam
E após, num leito dourado,
Recoberto de brocado,
Amável, galante, o Czar
A levou a repousar…
Sete noites, sete dias,
Teve o Czar tais regalias.
Qual moço amante perfeito,
Quase não deixava o leito…

Com a pausa que ordenara
Já bastante retardara
O Czar do regresso o avanço.
“Chega, agora, de descanso”,
Diz… E resolve voltar.
A nova, ao se propagar,
Leva às portas da cidade
Gente em grande quantidade.
Em torno ao coche do Czar,
Iam todos a aclamar,
Como a polidez convinha,
O Czar e a linda Rainha.

Barba branca como um cisne,
Sem fio negro que a tisne,
Sob o seu chapéu mourisco,
Montando um corcel arisco,
Surge o mago fabuloso
E diz: “Salve, poderoso,
Salve, onipotente Czar!”
“Então, não vais formular,
Afinal, o teu desejo?”
Dadon pergunta. “Este ensejo,
Em meio a tanto bulício,
Não me parece propício
— Diz o mago — a formular
Meu desejo, ó nobre Czar!”
Dadon retruca: “Tolice!
Vamos! Faze o que eu te disse…
Dize! A palavra de um rei
Atrás não volta… Empenhei
Contigo a minha”. E o mago
Esboça um sorriso vago...
À frente do povo ouvia
De Dadon o que queria:
“Pois bem, Czar: que seja minha
Esta formosa Rainha!”
Tira o Czar a adaga e brande-a:
“Como? A flor de Samarcândia?
És louco, atrevido mago!”
— “Só com ela estarei pago!”
— “Mas há limite, ora essa!”
— “Meu Czar, promessa é promessa!”
— “Cobrir-te-ei de ouropéis!
Dou-te até os meus corcéis,
Mesmo o meu belo alazão!
Farei de ti um barão!
Metade do meu império
Será teu… Prometo-o, a sério!”
— “Nobre Czar, a ambição minha
É tão somente a Rainha…”
Cuspindo de raiva, o Czar
Começa a vociferar
Injúrias, em vil jargão:
— “Que este infame, este bufão,
Desapareça daqui!”
E o mago apenas sorri…
Sorri sem nada dizer,
Talvez por lhe parecer
Uma imprudência brincar
Com a cólera do Czar…
Mal se vai o nigromante,
Com o cetro, o Czar, radiante,
Toca do eunuco o ombro…
Diante do geral assombro
Morre o pobre de repente!
Mas, de todos diferente,
A Rainha nada teme…
Com seus desvelos, extreme,
Sorri-lhe o Czar… E se vão!
Eis que se alvoroça então
O povo a um certo ruído!
É que — céus! — tinha fugido
Do alto do seu mirante
Naquele trágico instante
O galo de ouro… Ei-lo voando,
As áureas asas ruflando:
Como em presságio feral,
Procura o coche real!
No Czar, aflito, desfeito,
Pousou o galo… Bem feito!
Então, branco de terror,
Eis que salta o imperador
Do coche, aos gritos, tremendo,
No chão rolando e morrendo…
E a Rainha se esvanece,
Qual se ali não estivesse…

Fábulas, sendo invenções,
Mesmo assim nos dão lições…

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