Agora me apareceu oportunidade de obtemperar sobre outra opinião recentemente publicada, e que segue tendência diametralmente oposta à do referido editorial: em vez da desconsideração, a supervalorização da produção cultural do nosso querido (e crítico) Estado.
Antes de mais nada, repito uma percepção que já procurei externar em rede social, sobre as avaliações nossas da nossa própria cultura paranaense: são raras as visões equilibradas. A regra geral é: ou descascamos tudo criticamente, a ponto de pretender refutar sumariamente poetas, artistas e obras inteiras, chegando até a negar que algo como “cultura paranaense” de fato exista (é a visão mais frequente, que se pode chamar de autofágica – termo já cansado de ser usado), ou então, e normalmente reagindo de forma emotiva contra a autofagia, saímos em defesa louca e apaixonada dessa cultura, alardeando que todos os nossos produtos culturais são o máximo, e é mesmo uma pena que santo de casa não faça milagre, enfim (é a visão “paranista”, também já com muita quilometragem, desde que Romário Martins criou o “Centro Paranista”, em 1927).
Pois então. Na revista do festival Litercultura 2014, saiu um artigo de Robson Lima (“Luz de velas: a literatura paranaense ainda paira noir”), que de início parece refletir essa constatação das visões extremas e desequilibradas. Aliás, achei ótimo que um artigo assim tenha sido publicado, chamando atenção ao panorama local, na revista de um evento que por sua vez traz ao Paraná autores de expressão nacional e internacional.
No entanto, o prezado Robson Lima (“professor, consultor educacional, palestrante, músico, poeta e autor de material didático”, como informa sua apresentação no artigo) acaba mistificando o assunto, mesmo tendo começado como quem iria criticar as mistificações. O fato de ser um anunciado autor de material didático me convenceu definitivamente a interferir, na esperança também de que o próprio Robson Lima leia isso, e repense sua argumentação (não vá ele reproduzir nalgum material didático os problemas que a seguir comentarei).
Ao começar sua exposição, Robson escolhe falar de Fernando Amaro (1831-1857), que teria sido o “primeiro poeta do romantismo paranaense” – e depois escreve que “há muitos outros poetas” desse “movimento”, mas como a intenção é polêmica (Robson argumenta que não seria possível falar em literatura paranaense sem cometer injustiças ou heresias), não vai citar nenhum outro.
Tenho pesquisado já há bastante tempo a literatura paranaense, e posso dizer que nada impede ninguém de procurar falar no tema sem cometer qualquer injustiça ou heresia. Quanto ao período do “romantismo paranaense”, na verdade não houve tantos “muitos outros poetas” assim, e Fernando Amaro restou praticamente apenas como nome. Em vez dele, merecia ser citada a parnanguara Júlia da Costa (1844-1911), cuja obra foi re-editada no ano 2001, pela Imprensa Oficial (coleção Brasil diferente), e é o que de melhor podemos encontrar de “nosso” na época do Romantismo: uma poetisa (ou poeta, como queiram) que vale ser conhecida, estudada e compreendida. Por sinal, ela tem sido recentemente valorizada, por exemplo, pelo escritor Roberto Gomes, que publicou em 2008 o romance Júlia, e por duas montagens teatrais: Flores dispersas (com texto e direção de Regina Bastos) e Júlia na janela (monólogo de Teresa Teixeira de Britto, com atuação ímpar de Eliane Martins).
Voltando ao artigo: Robson Lima passa ao Simbolismo paranaense, e afirma que “o movimento simbolista brasileiro nasceu, cresceu e morreu no Paraná”. E ainda, que os simbolistas paranaenses teriam formado “o maior grupo de intelectuais do país, no final do século XIX”. E mais, que Cruz e Sousa não seria tão brilhante se comparado a Emiliano Perneta, o qual teria “traçado as rotas do Simbolismo brasileiro” com seu livro de estreia, Músicas, publicado em 1888, cinco anos antes do que seria a “obra mais expressiva” de Cruz e Sousa, Broquéis.
Todos esses exageros podem ser contestados facilmente. Os outros livros de poemas de Cruz e Sousa, os póstumos Faróis e Últimos Sonetos, bem como O livro derradeiro (reunido por Nestor Victor) são tão ou até mais expressivos do que Broquéis. E não seria necessário retirar brilho algum da poesia do catarinense (já avaliado pelo insuspeito crítico francês Roger Bastide como um dos três maiores poetas do Simbolismo, mundialmente falando, junto com Mallarmé e Stefan George) para assim valorizar o paranaense Emiliano Perneta, que no livro de estreia ainda hesitava entre Romantismo, Parnasianismo e Simbolismo, e só viria a atingir um nível poético elevado (e diga-se: antes característico e particular do que vinculado especificamente a alguma escola poética) com Ilusão, publicado em Curitiba, em 1911.
Por sua vez, os pioneiros simbolistas paranaenses formaram, sem dúvida, um grupo importante de intelectuais no final do século XIX (e o Simbolismo prosseguiu dominante aqui até a década de 1930, por mais duas gerações). Mas aquele grupo d'O Cenáculo (cuja revista pode ser encontrada na Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional) não foi necessariamente “o maior grupo de intelectuais do país” (por sinal, a Academia Brasileira de Letras foi fundada no Rio de Janeiro, em 1897), e o movimento simbolista, disseminado pelo Brasil, teve expressões importantes também no Rio Grande do Sul, além de em São Paulo, Minas Gerais e vários estados do Nordeste, sem ter propriamente nascido, crescido e morrido exclusivamente no Paraná.
Há mais um exagero no artigo de Robson, ao falar do Modernismo brasileiro e alardear que o Paraná teria antecipado a Semana de 1922. Mas faça-se justiça: talvez o único acerto de Robson esteja nas observações sobre a visibilidade de Paulo Leminski, pois realmente o polaco seria “tão pop que parece que toda a poesia paranaense se resume a Paulo Leminski” – e quem começa a estudar o assunto logo percebe que não é bem assim.
E assim, portanto, o prezado Robson acaba conduzindo uma argumentação mais consequente, ao citar Dalton Trevisan e Cristóvão Tezza, e tentar expressar que “a literatura paranaense ou está tão apagada que ninguém brilha, ou brilha tanto que ofusca a todos”. Só que para leitores atentos – e pesquisadores que se aprofundem mesmo – o brilho e a qualidade de Leminski, Trevisan e Tezza não ofuscam os de Helena Kolody, Dario Vellozo, Silveira Neto, Adolpho Werneck, Jamil Snege, por exemplo, mesmo que esses não tenham sido festejados nacionalmente.
Como quer que seja, para superar as visões subordinadas ao cânone estabelecido, é importante a leitores e sobretudo a críticos e pesquisadores manter uma visão equilibrada, e não delirar em superinterpretações sem correspondência com o que pode ser conferido em leituras rigorosas. Sob pena de continuarmos patinando numa situação geral de desvalorização (e autodesvalorização) cultural. Assim, espero que o Robson Luiz Rodrigues de Lima, entre os leitores e leitoras ao meu alcance, atente a essas considerações.
Porque tiros de festim podem às vezes resultar em cartuchos queimados saindo pela culatra.
Ivan Justen Santana
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2 comentários:
Não compreendi muito bem quando li a tal da palestra que pretendia enlatar o paraná e curitiba na mesma sardinha. E ao falar de paranaenses, não podemos nos esquecer do antoninense Bento Cego, ou dos escritos de viagem de Saint Hilaire ainda no século XVII. E outros tantos não citados na antologia dos 101 dálmatas, que também ignora a existência de Bento Cego, Fernando Amaro, entre outros. Organizados por critérios de inclusão e exclusão não justificados, e no caso dos 48 contos paranaenses, sem contar ao menos com a bibliografia utilizada para a reunião.
Antídoto
Não edita com fulano
nem publica na mesma
página que ciclano
muito menos a convite
de beltrano
poeta solitário
não paga por palavras
rouba e as faz próprias
como se fossem sempre
no árduo itinerário
clandestino
no próprio clã
corrigindo Saint Hilaire, séc. XVIII
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