terça-feira, fevereiro 28, 2006

DIRETO DE SÃO PAULO, AO VIVO, UM POEMA COM INÍCIO, MEIO E SEM FINAL FELIZ.

Caso eu forçasse o meu lápis ou o teclado
pra produzir algum versinho combinado,

não é certeza, mas muito provavelmente
faria um poema mesmo digno de gente:

eu até poderia enganar qualquer uma
que desejasse se enxergar inteira em bruma

e cada letra viraria então verdade,
ganhando assim com a rima a realidade.

Mas meu sentimento não é somente som:
não é só esse ó aqui que soa certo e bom:

quando eu começo (e comecei) minha arapuca
é pra roçar sem nenhum dó na tua nuca,

é pra pescar teu corpo, e de quebra o coração,
é pra fazer do nosso amor enfim canção

que muito mais do que palavra é sopro da alma,
é olho no olho, lábio em lábia, palmo a palma.

Só que se você faz pouco caso e não liga
me sinto feito um poeminha duma figa,

feito um versinho que perdeu o metro e a rima
(buscando embaixo o que ficou ali pra cima):

feito um Cupido que só atira bumerangues:
um coração que bate seco por seus sangues.

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

MAIS UM TEXTO DE HOSPÍCIO, PARA DETALHAR A RAZÃO DA MINHA VIDA E MEU ESTADO EMOCIONAL NO PERÍODO

O ENIGMA

Numa certa vez incerta, um cidadão que por pura coincidência se chamava Édipo foi consultar o Oráculo, que por pura coincidência era o de Delfos.

Aí, por pura coincidência, o cidadão Édipo chegou para uma muito sedutora pitonisa que vivia por lá e perguntou: “Qual é a resposta do Enigma?”

E a pitonisa, muito sedutora: “É uma face imaginária enquadrada numa circunferência.”

Então Édipo percebeu que não sabia qual era a pergunta do Enigma.

E assim tudo ficou por isso mesmo.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

TODA A VERDADE SOBRE O DESAPARECIMENTO DE IVAN JUSTEN SANTANA

Pois então: o que ocorreu mesmo foi que, após fechar seu botequinho predileto da rua Trajano Reis, Ivan se deparou com sua própria imagem espelhada no laguinho ali diante do cavalo-monumento do Largo da Ordem.

Nisso ele pressentiu algo e no que olhou pro lado viu se materializar uma ruiva estupefaciente (um olho verde, o outro furta-cor), de pele muito pálida e com um vestido preto que cobria apenas as partes mais insinuantes.

Ela disse vemcá com o indicador da mão esquerda, e no que Ivan fez menção de ir lá, uma luz cegante o abduziu até o interior duma cozinha hiperdimensional.

Enquanto um gato preto gigante com chapéu de mestre-cuca preparava iguarias inigualáveis, uma cadela trifauce identificou-se como a psicanalista, e cada uma das suas caras carrancudas fez a Ivan uma pergunta:

– Por que está aqui?
– Não sei, eu...
– Qualé a sua?
– É que eu...
– Você só pensa em si mesmo: é tudo eu, eu, eu?
– Mas eu...

Aí o gato bateu com uma colher no prato e numa explosão de trevas surgiu o anjo portador da luz, o qual determinou, apontando seu dedo inflamado para Ivan:

– Ficarás aqui até segunda ordem.
– Então tá, disse Ivan, encolhendo os ombros.

E foi assim que tudo aconteceu.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Porque o amor não admite reflexões prudentes

Tá: então nem você nem eu entendemos direito por que eu postei sobre um flerte com a morte, ou por que eu transformei minha fuça hirsuta numa face glabra.

Mas uma das explicações possíveis pro flerte com a morte foi a efeméride desse último dia 6: completaram-se 90 anos da morte do poeta nicaraguense Rubén Darío: na minha sacrossanta ignorância, eu já tinha ouvido falar nesse chapa, mas nesta última segunda entrei de novo na biblioteca e, além ter virado Borges e Cortázar (por alguns instantes), metamorfoseei-me em Rubén Darío, aprendendo que meu primeiro nome era Félix (se me lembro direito) e que nasci no dia 18 de janeiro de 1867 e morri em 6 de fevereiro de 1916.

Toda essa prosa pernóstica não diz nada do que eu quero mesmo dizer, que está aqui nestes versinhos de Rubén Darío, por mim traduzidos e dedicados para aquela que não me sai do pensamento

PORQUE O AMOR NÃO ADMITE REFLEXÕES PRUDENTES

Senhora: o Amor é violento,
e quando nos transfigura
nos inflama o pensamento
a loucura.

Não peças paz a meus braços
que aos teus braços estão presos:
são de fúria os meus abraços
e são de incêndio meus beijos;
e seria vão o intento
de qualquer razão obscura
se me inflama o pensamento
a loucura.

Minha mente é iluminada
com chamas de amor, Senhora,
qual tenda da madrugada
e qual palácio da aurora.
E ao olor do teu ungüento
vai atrás minha ventura,
e me inflama o pensamento
a loucura.

Meu gozo teu paladar
como um favo conceitua,
como no santo Cantar
mel et lac sub lingua tua.
A delícia: teu alento
em tão fino vaso apura,
e me inflama o pensamento
a loucura.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Flerte com a morte

não consegui olhar direto
dentro dos olhos dela:
ali,
a milímetros da morte certa,
relaxei,
tentei não pensar em nada
ou coisa que o valha:

sim, o fim sorriu pra mim
e eu não vi
nem o fio da navalha...


(isso é supostamente um poema celebrando o fato de que eu raspei barba, bigode e cabelo...)

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Entrei na biblioteca, abri um livro e quando vi

tinha me transformado em Jorge Luis Borges:

O AMEAÇADO

É o amor. Terei que me esconder ou fugir.

Crescem os muros de sua prisão, como num pesadelo. A bela máscara mudou, mas, como sempre, é única. De que me servirão meus talismãs: o exercício das letras, a vaga erudição, a aprendizagem de palavras em línguas exóticas, a serena amizade, as galerias da Biblioteca, as coisas comuns, os hábitos, o jovem amor de minha mãe, a sombra militar dos meus mortos, a noite atemporal, o sabor do sonho?

Estar contigo ou não estar contigo é a medida do meu tempo.

O cântaro já se quebra sobre a fonte, já o homem se levanta com a voz da ave, já se obscureceram os que olham pelas janelas, mas a sombra não trouxe a paz.

É, já sei, o amor: a ansiedade e o alívio de ouvir tua voz, a espera e a memória, o horror de viver uma hora depois da outra.

É o amor com suas mitologias, com suas pequenas magias inúteis.

Há uma esquina pela qual não me atrevo a passar.

Os exércitos já me cercam, as hordas.

(Esta casa é irreal; ela ainda não a viu.)

O nome de uma mulher me dedura.

Me dói uma mulher no corpo todo.



(ligeiramente adaptado de El Amenazado, El oro de los tigres)