sábado, outubro 30, 2004

Inspirado pela loucura

___


Então uma hora a euforia se encharca de tristeza.

O prazer emudece e se veste de preto.

Do sorriso sobram só as cicatrizes no rosto.

Mesmo a poesia perde rimas e ritmos

e soa falsa prolixa ridícula.


Então a luz se curva

e some num buraco negro.


E aí vem a dor.


Mas no meio desse eclipse

uma voz rebate na memória

e as estrelas piscam na promessa

de explosões de cores flores amores.


***

ESTROPIANDO LEMINSKI

(A dor me faz lembrar um poema do polaco,
que dizia qualquer coisa assim:)


ver
é dor
ouvir
é dor
ter
é dor
perder
é dor

só doer
não é dor

delícia
de experimentador

sábado, outubro 23, 2004

Pra começar a ler hoje e só terminar dia 29

Lady Lázaro


Eu fiz outra vez.
Um ano a cada dez
Eu consigo ––––

Um tipo de milagre ambulante,
Minha pele brilhante: um abajur Nazista,
Meu pé direito

Um pesa-papéis,
Meu rosto um inexpressivo e fino
Linho judeu.

Descasque o guardanapo
Oh, meu inimigo.
Aterrorizo? ––––

O nariz, o buraco dos olhos, todos os dentes?
O bafo azedo
Desaparecerá num dia.

Logo, logo a carne
Comida pela caverna soturna estará
Em casa em mim

E eu, uma mulher sorridente.
Eu só tenho trinta.
E, feito os gatos, nove vezes pra morrer.

Esta é a Número Três.
Que sujeira
Aniquilar assim cada década.

Que milhões de filamentos.
A multidão comendo amendoim
Acotovela-se pra ver

Me desempacotarem toda––––
O grande strip-tease.
Senhoras e senhores

Estas são minhas mãos
Meus joelhos.
Eu posso ser pele e osso,

Não obstante, sou a mesma mulher, idêntica.
Da primeira vez eu tinha dez.
Foi um acidente.

Da segunda vez eu quis
Passar por isso e não voltar mesmo.
Me petrifiquei fechada

Feito uma concha.
Tiveram que chamar e chamar
E me pinçar os vermes como pérolas grudentas.

Morrer
É uma arte, como tudo mais.
Faço isso de um jeito excepcional.

Faço isso de uma maneira infernal.
Faço isso de modo real.
Você pode falar que é minha vocação.

É muito fácil fazer isso numa prisão.
É muito fácil fazer isso e ficar nisso.
É a volta teatral

Em pleno dia
Pro mesmo lugar, mesmo olhar, mesmo bruto,
Entusiasmado grito:

“Milagre!”
Que me põe no chão.
Tem uma taxa

Pra ver minhas cicatrizes, tem uma taxa
Pra ouvir meu coração–––––
Bate realmente.

E tem uma taxa, uma taxa bastante cara
Por uma palavra ou um toque
Ou uma gota de sangue

Ou pedaços do meu cabelo ou das minhas roupas.
Ora, ora, Senhor Doutor,
Ora, Senhor Inimigo.

Eu sou sua obra,
Eu sou sua preciosidade,
O bebê de ouro puro

Que se derreteu num guinchado.
Eu giro e queimo.
Não pense que subestimo suas rugas de preocupação.

Cinzas, cinzas––
Você vira e remexe.
Carne, osso, não tem nada ali–––

Um bolo de sabão,
Um anel de casamento,
Uma obturação de ouro.

Senhor Deus, Senhor Lúcifer
Cuidado
Cuidado.

Das cinzas eu me ergo
Com meu cabelo vermelho
E devoro os homens como vento.


Sylvia Plath

(23-29 October 1962)

Versão Brasileira: Ivan Justen Santana


quinta-feira, outubro 21, 2004

Priscila

Hoje todas as mulheres
Que eu vi eram
Você
Você ali
Você aqui
Você
E também
Além de tudo

Você

segunda-feira, outubro 18, 2004

Hoje eu só digitei duas canções pro meu amor


Pano pra manga

(Xico Chaves/ Jards Macalé)

Costura, meu amor, costura
Com linha pura meu amor com o teu
Pinta e borda que dá pano pra manga
O meu amor com o teu

A vida sempre por um triz
Seja de bicho, bandido ou atriz
Ninguém pode pedir um bis
Bom mesmo é sempre se viver feliz

Costura, meu amor, costura
Com linha pura meu amor com o teu
Pinta e borda que dá pano pra manga
O meu amor com o teu


Puntos Cardinales

(Jorge Mautner/ Jards Macalé/ Fidel Castro)

En las catacumbas del Frenesi
Yo cantaba una rumba
Yo cantaba assi

Una rumba con zabumba
Solamente para ti
Mi calunga, mi calunga
Do, re, mi, fa, sol, la, si

Tus besos apagan
Todos los males
Tus besos son
Los Puntos Cardinales

Dançando em cima dos planetas
E também de um meteoro
Sapateando em cima dos cometas
Eu te amo eu te adoro


sábado, outubro 16, 2004

TODOS OS ARCANOS DESTE BLOG REVELADOS NUMA POSTAGEM SÓ


Voltando às postagens mais prosaicas,
Acordei hoje resolvido a ler o meu destino
Aqui em voz alta,
Para quem quiser ouvir.

É um número sujo:
Só eu posso fazê-lo:
Prometo fazer com zelo.

Então tirem as crianças da sala
E ponham-nas na frente da tela.

Um dia
Este blog se chamava
Depois daquele surto.

Hoje, morte súbita.

E assim, o seguinte início de romance será formado:

Depois daquele surto, morte súbita, delírio, e uma noite repleta de pesadelos inquietantes, Ivan acordou certa manhã e viu-se transformado num gigantesco aracnídeo.

quarta-feira, outubro 13, 2004

VAMOS BRINCAR DE BAUDELAIRE?

*
ALMA PASSANTE


A rua matava surdo a buzinada.
Faróis e placas falavam ao mesmo tempo.
Meu pé: dependurado na calçada,
Mas o olhar já contornava o cruzamento.

Percebi que perseguia uma passante
No que ela viu também que me seguia.
Disfarcei e ela disfarçou no mesmo instante.
Fiz que fui e não fui, e ela ia mas nem ia.

Fiz cara de mais velho. Ela se deu ar de menina.
Saí pela esquerda, ela, pela direita.
Esbarramos logo na próxima esquina,
Cúmplices abaixo de qualquer suspeita.

*

terça-feira, outubro 12, 2004

Um presente de dia das crianças

Papai

Você não serve, você não serve
Mais, sapato preto
No qual vivi como um pé
Por trinta anos, pobre e branca,
Mal me atrevendo a respirar ou espirrar.

Papai, eu precisei muito matar você.
Você morreu antes que eu tivesse tempo de –
Peso mármore, um saco cheio de Deus,
Estátua cadavérica com um dedão cinzento
Grande feito uma foca de Frisco

E uma cabeça no Atlântico em surto
Onde chove verde feijão sobre azul
Nas águas da maravilhosa Nauset.
Eu rezava pra recuperar você.
Ah, você.

Na língua Alemã, na cidade Polonesa
Terra-planada pelo rolar
De guerras, guerras, guerras.
Mas o nome da cidade é comum.
Meu amigo polaco

Diz que há umas duas dúzias.
Então eu nunca pude saber onde você
Pôs o pé, suas raízes,
Nunca pude conversar com você.
A língua ficava grudada.

Grudava num laço de arame farpado.
Eu, eu, eu, eu,
Eu mal podia falar.
Eu pensava que todos os alemães eram você.
E a língua obscena

Uma máquina, uma máquina
Me vaporizando feito uma Judia.
Uma Judia em Dachau, Auschwitz, Belsen.
Comecei a falar feito uma Judia.
Acho que posso ser mesmo uma Judia.

As neves do Tirol, a cerveja clara de Viena
Não são mais puras ou verdadeiras.
Com minha ancestral cigana, minha sorte estranha
E minhas cartas de Tarocchi
Eu posso ser um pedaço Judia.

Sempre tive medo de você,
Com sua Luftwaffe, seu blábláblá.
E seu bigode bem feito
E seu olho Ariano, azul brilhante.
Homem-Panzer, homem-tanque –

Não Deus mas uma suástica
Tão preta que nenhum céu atravessaria.
Toda mulher adora um Fascista,
A bota na cara, o bruto brutal
Coração de um bruto feito você.

Você de pé ao quadro-negro, papai,
Na foto que tenho de você,
Uma fenda no queixo em vez de no pé
Mas não menos um diabo por isso, não, nem
Um pouco menos o homem preto que

Mordeu meu coração vermelhinho em dois pedaços.
Eu tinha uns dez anos quando enterraram você.
Aos vinte tentei morrer
E voltar, voltar, voltar pra você.
Achei que até os ossos seriam suficientes.

Mas me tiraram do saco,
E me colaram os pedaços.
E então eu soube o que fazer.
Fiz um modelo de você,
Um homem de preto, com aparência Meinkampf

E um amor por tumulto e loucura.
E eu disse sim, eu aceito.
Então, papai, finalmente acabei.
O telefone preto foi cortado pela raiz,
As vozes já não rastejam mais até aqui.

Se já matei um homem, mato dois –
O vampiro que disse que era você
E bebeu meu sangue por um ano,
Por sete anos, se você quer saber.
Papai, você pode se deitar agora.

Tem uma estaca no seu gordo coração preto
E os aldeões nunca gostaram de você.
Eles estão dançando e pisando em você.
Eles sempre souberam que foi você.
Papai, papai, seu bastardo, acabei.


Sylvia Plath (1932-1963)

Escrito no dia 12/10/1962

Traduzido por Ivan Justen Santana, no dia 12/10/2004.

domingo, outubro 10, 2004

Três fios de lã para a gataria brincar

A un gato
A um gato
Prum gato


Jorge Luis Borges

Tridimensão: Ivan Justen Santana

No son más silenciosos los espejos
Não são mais silenciosos os espelhos
Você não grita mais que um espelho.

ni más furtiva el alba aventurera;
nem mais furtiva a aurora aventureira;
Você surge mais súbito que a manhã.
eres, bajo la luna, esa pantera
assim és, sob a lua, esta pantera
Debaixo da lua, tudo é pantera irmã
que nos es dado divisar de lejos.
que só de longe divisar podemos.
na qual mal podemos meter o bedelho.


Por obra indescifrable de un decreto
Por obra indecifrável dum decreto
Por obra insolúvel feito um país

divino, te buscamos vanamente;
divino, te buscamos inutilmente;
terrestre, procuramos você sem achar.

más remoto que el Ganges y el poniente,
mais remoto que o Ganges e o poente,
Mais distante do que qualquer lugar,

tuya es la soledad, tuyo el secreto.
tua é a solidão, teu o segredo.
sua solidão e segredo são do seu nariz.


Tu lomo condesciende a la morosa
Teu lombo condescende à morosa
Sua pele agüenta a devagarzinha

caricia de mi mano. Has admitido,
carícia de minha mão. Aceitamento,
carícia da minha mão. Você admitiu,

desde esa eternidad que ya es olvido,
desde esse infinito e já esquecimento,
desde esse infinito que o partiu,

el amor de la mano recelosa.
do amor dessa mão receosa.
o amor dessa medrosa mãozinha.


En otro tiempo estás. Eres el dueño
Estás noutro tempo. És proprietário
Você não existe nesse mundo. Conduz

de un ámbito cerrado como un sueño.
de um âmbito fechado imaginário.
um ambiente fechado de sonho e luz.


El oro de los tigres, 1972

sexta-feira, outubro 08, 2004

SOBRE A COR DOS OLHARES

os olhos dizem mais que as palavras falam
os olhos fizem mais que as palavras calam
os olhos gizem mais que as palavras balam
os olhos lizem mais que as palavras salam
os olhos mizem mais que as palavras tralam
os olhos nizem mais que as palavras chalam
os olhos pisem mais que as palavras chtchalam
os olhos dizem mais que as palavras

quinta-feira, outubro 07, 2004

Por mais que o tempo passe

Por mais que a vida vaze
e se perca pela linha de fundo,

por mais talvez ou quase
ou mesmo que acabe o mundo;

seja na hora do tudo ou nada,
no meio da rua, no final da calçada,

quando a lua suma, o sol não se levante
e não haja mais a menor possibilidade,

vou te achar dentro do último instante,
vou te buscar com mil anos de idade.


terça-feira, outubro 05, 2004

um poema postagem telegráfica

Logo mais vou tentar equilibrar
minha insanidade pública
com uma íntima loucura.

E finalmente, com vocês, este perigoso número:

Os dois últimos pedaços do gato Asparagus

(não tentem fazer isso em casa),

grudados como gêmeos siameses.

Ah, pra criar suspense, sabem a dos gêmeos siameses?

Não? Pois é:

eles estão assim há meses.

*rufar de tambores*


(...)

Then, if someone will give him a toothful of gin,
He will tell how he once played a part in East Lynne.
At a Shakespeare performance he once walked on pat,
When some actor suggested the need for a cat.
He once played a Tiger – could do it again –
Which an Indian Colonel pursued down a drain.
And he thinks that he still can, much better than most,
Produce blood curdling noises to bring on the Ghost.
And he once crossed the stage on a telegraph wire,
To rescue a child when a house was on fire.
And he says: ‘Now, these kittens, they do not get trained
As we did in the days when Victoria reigned.
They never get drilled in a regular troupe,
And they think they are smart, just to jump through a hoop.’
And he’ll say, as he scratches himself with his claws,
‘Well, the Theatre’s certainly not what it was.
These modern productions are all very well,
But there’s nothing to equal, from what I hear tell,
That moment of mystery
When I made history
As Firefrorefiddle, the Fiend of the Fell.’

Se então mais outro gim, de graça, ele derruba,
Vai contar que cantou de dentro de uma tuba.
Numa peça do Bardo, empolgou-se no treino
Porque Ricardo quis trocá-lo por seu reino.
Já fez papel de Tigre (inda tem esse plano...)
Que foge de bengala, entrando por um cano.
Dava um grito de dor que emocionava a Casa
Na cena de tirar as castanhas da brasa.
Certa vez, sobre o palco, agarrado ao pendente
Da luz, salvou do incêndio uma fãzinha ardente.
E prossegue: “Hoje o Palco, o que tem de bichanos!
O inverso dos galãs que fomos tantos anos.
E as gatinhas a achar que cena é erguer a saia,
A posarem de atriz, mas só levando... vaia.”
E acaba por dizer, usando a garra em pente:
“O Teatro não é mais o que era antigamente.
As novas produções são boas, são, vá lá!
Mas nada se compara, um dia se verá,
Ao momento de glória
Em que fazia história
No “Fanhofarofino, a Fera do Mafuá!”

Thomas Stearns Eliot

Tradução: Ivo Barroso

(^.^)(,,,)(,,,)~

segunda-feira, outubro 04, 2004

Enquanto o resto do gato não vem

Peço paciência às minhas milhares de fã (calma, Pris), mas tenho que retalhar bem o gato.

Então enquanto isso aqui vai um soneto bem a propósito pras minhas futuras viagens aéreas...


INSTRUÇÕES PARA MORRER BEM NO AVIÃO

Suba a bordo. A comissária sorridente
Ajudará a achar seu lugar marcado.
É muito provável que ali logo ao lado
Já haverá um outro figurante inocente.

Decole para a morte tranqüilamente.
Medite no destino dançando um fado:
Diante disso, assistir assim assustado
É sofrer demasiado o fim justo em frente.

Sofra, ao inverso, com bastante alegria,
Só com pesar pela leveza de um dia
Na vida de aves que só têm mais um mês.

Agradeça ao piloto que enfim decide o
Seu triste fim, sem suicídio ou homicídio,
E pra variar pode pousar dessa vez.


sexta-feira, outubro 01, 2004

Esse é o recheio: logo mais o restinho do gato Gogó

(...)

“Representei”, diz ele, “o que houve de melhor,
E uns setenta papéis pude guardar de cor.
Fiz de tudo: Romiau, Gato-de Botas... Célebre
Ficou sendo a expressão com que passei por lebre.
Sabia erguer o rabo, olhava de soslaio;
Não podia falhar, com uma hora de ensaio.
Minha voz comovia o coração mais duro,
Fizesse eu o galã ou um lacaio obscuro.
Fiz peças infantis – é claro, baboseira
Em que contracenei com a Gata Borralheira.
E lembro, numa peça americana, o afinco
Que quase me levava a me torrar no zinco.
Mas meu melhor papel, como a História dirá,
Foi “Fanhofarofino, a Fera do Mafuá!”


(...)

‘I have played’, so he says, ‘every possible part,
And I used to know seventy speeches by heart.
I’d extemporize back-chat, I knew how to gag,
And I knew how to let the cat out of the bag.
I knew how to act with my back and my tail;
With an hour of rehearsal, I never could fail.
I’d a voice that would soften the hardest of hearts,
Whether I took the lead, or in character parts.
I have sat by the bedside of poor Little Nell;
When the Curfew was rung, then I swung on the bell.
In the Pantomime season I never fell flat,
And I once understudied Dick Whittington’s Cat.
But my grandest creation, as history will tell,
Was Firefrorefiddle, the Fiend of the Fell.’