sábado, outubro 23, 2004

Pra começar a ler hoje e só terminar dia 29

Lady Lázaro


Eu fiz outra vez.
Um ano a cada dez
Eu consigo ––––

Um tipo de milagre ambulante,
Minha pele brilhante: um abajur Nazista,
Meu pé direito

Um pesa-papéis,
Meu rosto um inexpressivo e fino
Linho judeu.

Descasque o guardanapo
Oh, meu inimigo.
Aterrorizo? ––––

O nariz, o buraco dos olhos, todos os dentes?
O bafo azedo
Desaparecerá num dia.

Logo, logo a carne
Comida pela caverna soturna estará
Em casa em mim

E eu, uma mulher sorridente.
Eu só tenho trinta.
E, feito os gatos, nove vezes pra morrer.

Esta é a Número Três.
Que sujeira
Aniquilar assim cada década.

Que milhões de filamentos.
A multidão comendo amendoim
Acotovela-se pra ver

Me desempacotarem toda––––
O grande strip-tease.
Senhoras e senhores

Estas são minhas mãos
Meus joelhos.
Eu posso ser pele e osso,

Não obstante, sou a mesma mulher, idêntica.
Da primeira vez eu tinha dez.
Foi um acidente.

Da segunda vez eu quis
Passar por isso e não voltar mesmo.
Me petrifiquei fechada

Feito uma concha.
Tiveram que chamar e chamar
E me pinçar os vermes como pérolas grudentas.

Morrer
É uma arte, como tudo mais.
Faço isso de um jeito excepcional.

Faço isso de uma maneira infernal.
Faço isso de modo real.
Você pode falar que é minha vocação.

É muito fácil fazer isso numa prisão.
É muito fácil fazer isso e ficar nisso.
É a volta teatral

Em pleno dia
Pro mesmo lugar, mesmo olhar, mesmo bruto,
Entusiasmado grito:

“Milagre!”
Que me põe no chão.
Tem uma taxa

Pra ver minhas cicatrizes, tem uma taxa
Pra ouvir meu coração–––––
Bate realmente.

E tem uma taxa, uma taxa bastante cara
Por uma palavra ou um toque
Ou uma gota de sangue

Ou pedaços do meu cabelo ou das minhas roupas.
Ora, ora, Senhor Doutor,
Ora, Senhor Inimigo.

Eu sou sua obra,
Eu sou sua preciosidade,
O bebê de ouro puro

Que se derreteu num guinchado.
Eu giro e queimo.
Não pense que subestimo suas rugas de preocupação.

Cinzas, cinzas––
Você vira e remexe.
Carne, osso, não tem nada ali–––

Um bolo de sabão,
Um anel de casamento,
Uma obturação de ouro.

Senhor Deus, Senhor Lúcifer
Cuidado
Cuidado.

Das cinzas eu me ergo
Com meu cabelo vermelho
E devoro os homens como vento.


Sylvia Plath

(23-29 October 1962)

Versão Brasileira: Ivan Justen Santana


7 comentários:

Ratapulgo disse...

Beleza!
Infelizmente terminei hoje.
Dia 29 releio! :)

Ah! O Pessoa que eu pensei em traduzir é o Ode Triunfal.
Que você acha?

Ivan disse...

Não sei não.
Essa Ode, assim como a Marítima (minha favorita) é de Álvaro de Campos.
Até onde eu me lembro, tem trechos em inglês (que são divertidos, até as gargalhadas), e eu gosto que esse poema seja também incompreensível feito um barulho de máquina. Pra que traduzir?

Em todo caso, vou olhar o poema de novo: só que o meu Pessoa eu vendi por uma noite de amor, então terei que saquear uma biblioteca. Stand by.

Ivan disse...

Agh, rata: você é muito engraçado mesmo. Fui olhar a Ode e não achei trecho em inglês (uns microgramas de francês e olhe lá)...

Ou você está brincando ou a idéia de atualizar a linguagem e as referências até que merece atenção: um pessoal amigo meu já fez isso com um soneto de camões e até com o inferno da divina comédia.

Aguarde que eu posto o soneto camoniano logo. Tem outro caso que é o soneto de Raimundo Correia atualizado por Euclides da Cunha: vou postar futuramente também, com um texto do Leminski sobre tradução.

Tudo isso é muito interessante e divertido, mas não consegui tirar o nariz de palhaço que grudou na minha cara...

Ratapulgo disse...

Ó, Ivan, eu assobio o começo e você pega o embalo:

À dolorosa luz dos raios catódicos do meu monitor
Tenho febre e digito.
Digito angendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó chips , ó processadores, Bz-z-z-z-z-z-z eterno!
Forte espasmo retido dos circuitos em fúria!
etc

Há Aristóteles dentro das máquinas…

Ah, tudo bem, é muito grande mesmo…
Mas a idéia é legal!

Eu quero esse Camões, manda pra mim!

gde abraço!

Priscila Manhães disse...

Ivanzinho,

Ana Cristina César morreu dia 29 de Outubro de 1983, exatamente 21 anos depois que Silvia Plath.

Interessante não?

Saudades
Beijo.
Pri

Priscila Manhães disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Priscila Manhães disse...

Te gosto muito, senhorito. ;)
:P

Beijo