quinta-feira, maio 15, 2014

A ANGÚSTIA DA EXISTÊNCIA

(Um poema-ensaio-anseio paranaense)

Disseram que não existe cultura paranaense.
Que a cultura paranaense não tem passado nem
presente nem futuro. Escreveram isso ali,
na rede social.
E é verdade mesmo, pois quem escreveu
é um dos mais notórios fabricantes de
cultura paranaense.
E a cultura paranaense é mais que consistente:
é paraconsistente: não existe e existe –
ocupa e não ocupa dois ou mais lugares
em mais de uns sete ao-mesmo-tempos
no espaço de infinitos lugares nenhuns:
sim, está bem ali.
Olhem só: vocês não sabem o que é:
e está bem por lá:
é a cultura paranaense.
Cultura de uma gente que sabe dizer quem não é.
Sabemos e estamos até cansados de dizer que não.
Outra fabricante de cultura paranaense definiu:
“em Curitiba, os dez mandamentos se resumem a um:
não” – pois é: sim, paranaense não é só
o curitibano que não se enxerga no espelho
do banheiro de manhã – olhem mais ali,
logo ali, em Londrina: Londrina nasceu ontem,
não pode existir, não fica no Brasil: portanto...
É paranaense.
Sim, pode até ser um drama pro Domingos
Pellegrini, que certamente se dependesse dele
moraria num estado chamado Iguaçu,
com capital londrinense – a capital: talvez Foz –
enfim, é outro fabricante de cultura paranaense:
não existe, logo está ali, nesse nosso estado –
e já que estamos citando nomes, não espalhem:
não existiu um compositor musical
chamado Brasílio Itiberê, ali de Paranaguá,
que compôs uma certa “Sertaneja”, música
precursora da mistura de elementos clássicos
com tradição popular – mas cadê essa “Sertaneja”?
Ninguém sabe, ninguém ouviu – portanto:
existe: é paranaense.
Vamos passar à arquitetura:
“o estilo arquitetônico predominante durante
o ciclo do mate, quando Curitiba deu um salto
civilizatório, foi o eclético” – sim, eclético, mas
o que é isso? É o que não é – é a mistura das coisas
que são, portanto, novamente:
paranaenses.
Vamos lá, vamos aprofundar mais ao nível pessoal:
estava eu (até que demorei pra falar de mim, não?
enfim, agora aguentem...) mediando e organizando
um evento bem paranaense: o Bloomsday – sabem,
o Bloomsday, sobre a obra daquele escritor irlandês
James Joyce, que escreveu um livro que não tem ponto
final (epa, claro que tem – então, devia ser algo bem
paranaense), sabem, né, então, estávamos naquela
livraria paranense chamada Fnac, sabem, e eu
fui babaca –
opa, vamos parar: você, Ivan, foi babaca?
Sim, pois é: estava na assistência
(querem coisa mais paranaense que chamar
quem assiste de assistência? – enfim, vamos lá,
Ivan, demorou com a história) estava na assistência
um grande escritor paranaense: Cristóvão Tezza –
ué, mas ele não nasceu em Lages?
Exatamente: eu fui babaca de “brincar” que o
Tezza não podia ser um escritor paranaense –
e enfim, meio que me justificando:
nunca fomos ali tão paranaenses:
a livraria era francesa, o escritor homenageado,
irlandês – mas o nome do shopping, apesar de “park”
era (é) Barigui.
Tá aí.
Podemos ser curitibabacas o quanto nossas falhas
permitam – e gostamos de fazer esses meas-culpas,
pelo menos eu por mim estou gostando disso,
eu que sempre-nunca me orgulhei
de ser curitibano de pai e mãe curitibanos,
e pra meu próprio horror-amor um dia descobri:
se aqui somos alguma coisa,
somos todos (e todas) tingui,
tinguis, tupis, nos nossos topônimos
estão essas “nossas” (com e sem aspas)
origens: Curitiba, Guarapuava, Maringá,
Paraná – pois é: dizem que até nem mesmo
o nome desse estado foi escolhido aqui,
mas está aí, nosso, e nosso de quem,
meus caros e caras pálidas?
O negócio é que o adiantado da hora
me obriga a seguir atrasando e incomodando –
e também me desculpando: Domingos,
nada pessoal: os paranaenses que acham que se
sabem minimamente paranaenses
gostam de que você exista,
tenha seu jeito e suas opiniões:
com o perdão da intimidade
(imperdoável aos curitibanos, mas perdoável –
porque inexistentes – aos paranaenses),
o teu sobrenome de imigrante, Domingos,
é o mesmo sobrenome de Kolody,
de Leminski, de Trevisan, de Karam,
de Bueno, de Wojciechowski, e até do
França – sim, do Alexandre França,
esse grego curitibano que agora resolveu
morar em São Paulo – do mesmo jeito
que aquele Carlos Careqa, que mantém
essa nossa cultura bem paranaense:
que não existe, está aí, não incomoda,
incomoda –
e ninguém nota.
Aliás, alguém aí
ouviu falar da Ada Macaggi?
Então, lá
em Paranaguá,
políticos confundem Júlia da Costa
com Júlia Wanderley
nas inaugurações de bustos de praças,
portanto: sim, existe
a cultura paranaense,
existiram e existem e existirão
Arrigo Barnabé,
Itamar Assumpção,
que são lá de Londrina,
de Arapongas, ou não –
voltando aos mais paranaenses
lá de Santa Catarina, como não:
se por lá existe uma cidade chamada
Curitibanos, que quem nasce lá deve ser o quê?
Curitibanense? Ou não existe: ou melhor: sim:
paranaense.
Uma cultura que se deseja assim nenhuma,
apagada, emprestada, que quer ser outra
ou adota fácil o que “vem de fora” mas
nasceu logo ali, ali nesse nosso mundo,
tão inexistente e paranaense – enfim:
vamos a mais um descarrego pessoal,
que isso aqui é um poema inexistente,
uma coisa típica paranaense:
alguém aí já viu uma gralha azul
plantando uma araucária?
Que angústia mais angustifólia –
sinto como deve ser essa saudade,
estou escrevendo esse ensaio-anseio também
pruma certa paranaense
que agora está vivendo nos “esteits” –
Xanda Lemos, veja só, que vergonha,
me perdoe a menção – mas vamos rápido
a um corte pra falar de inimizade, calma aí,
que esse treco tem que ser mais polêmico,
então reservem a Xanda e sua banda – e também
a banda Mordida, e quem sabe nessa enrolação
eu também deva mencionar um certo xará,
o Ivan Rodrigues, filho daquele Ivo Rodrigues,
daquela banda, o Blindagem, a Blindagem, enfim,
eu sei, vocês não conhecem, não existe, pois é:
paranaense, demasiadamente paranaense.
Mas estou perdendo o pé:
eu ia falar dum amigo curitibano meu,
um camarada aí, o Márcio Renato dos Santos –
sim: esse também – publicou recentemente
um livro-dicionário sobre Curitiba:
vejam lá, leiam: eu não li (ainda),
sou um tremendo curitibabaca,
mas soube que no livro o Márcio diz
que “autofagia” não existe, que os curitibanos
são na verdade muito críticos e exigentes,
vejam só então:
não é perfeito, perfeitamente
paranaense? –
nos negamos com facilidade:
e aí nesse negamos podemos
até negar que somos “um Brasil diferente”,
e também dizer que não houve escravidão aqui,
e promover esse apagamento duma mestiçagem
duma negritude
que possivelmente vamos ter muita vergonha
em confessar – afinal:
paranaenses, percebem, não existimos,
não temos nem mais a nossa própria
maledicência, está se perdendo...
E o sotaque? Qual sotaque?
Agora está virando mais marcadamente
uma fala acaipirada, porque não, de jeito
nenhum somos caipiras, somos esse
experimento de “primeiro” mundo,
não é mesmo?
Somos essa tentativa
de não ser jacus
que acaba sendo ainda mais jacu:
vide os socorros batéis...
Enfim,
como sempre,
restou muito a ser dito –
quase fiquei ainda mais aflito,
e se é poema também tem que ser
alguma forma de grito – mas tolerem,
que é um modo curitibano – e paranaense,
de ser assim tímido, calado, quieto,
mas de repente flutuante – pois é:
de fato – ultimamente sentimos que
estava acontecendo algo,
que as pessoas (muita gente vindo de fora,
querem algo mais contraditoriamente
paranaense?) estavam mais simpáticas,
mudando, se enturmando –
e realmente – mudamos pra novamente
voltar a amaldiçoar nossas angústias
de existência inexistente,
e agora – ei, e agora, você nem falou
das artes plásticas, do problema do grafite,
da oficialidade versus o vandalismo,
e já vai indo?
É, meu caro Ivan:
a sua loucura não é mais
nem menos paranaense
que a de todos esses que nem fazemos
uma identidade cultural homogênea:
quem sabe com toque de gênio,
ainda com algum oxigênio pra queimar, mas –
não, não existimos como povo,
o Brasil não é isso, nada é assim,
a rima até que é fácil nesse fim,
e você com essa mania de “sim”
quem sabe faça sorrir algum querubim
se não se esquecer de dar à amada um quindim
de um versinho apaixonado e nada chinfrim,
mas outra vez enfim,
volte pra sua tese, não existe cultura paranaense,
não tem jeito, não adianta, esquece,
já bastou, de novo: fim.

Nos vemos todos lá no MON,
na exposição
do João
Turin.


...

3 comentários:

Marcelo Brum-Lemos disse...

Putamerda!!! Muito legal!

Anônimo disse...

Você não existe, Ivan! (essa é com certeza, uma expressão paranaense)
Bj
Marilda sumindo sumin sumi.

Anônimo disse...

perfeito!!!( ñ sou curitibana !)....adorei pq moro aqui há um ano e me instiga muito muito (pelo bem e pelo mal) a profusãovocação dos curitibanos para dizer NÃO...dos modos mais diversos... nos desvios do corpo...extravios do olhar