Segue aqui também o Ascensão e Declínio, escrito em 1985. É o primeiro poema dele selecionado no concurso, que resultava (parece que isso acontece até hoje) na publicação do livro Palavra Viva. Poema de um piá de 13 para 14 anos. Ascensão e declínio. E eis a postagem final de tributo ao meu irmão. Valeu, Cid!
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A Noite de um Dia Difícil
Dias difíceis todos nós temos. São quando o relógio trabalha mais do que nós, ou quando o supermercado está cheio, ou quando a energia acaba. No mais, ligamos a ignição do carro e voltamos pra casa, tendo o cuidado de desligar o rádio quando começa o informe estatal.
A noite de um dia difícil é diferente, repleta de pensamentos. Mesmo que os computadores não queiram, quando algo diferente acontece, nós começamos a pensar. E eu penso.
Penso que não sei se as pessoas continuarão a correr inescrupulosamente atrás do dinheiro, como única alternativa pra uma sobrevivência decente. Somos escravos das horas, do patrão e do "descanso semanal remunerado". O egoísmo e a ambição desunem os homens. Todos correm todos os dias atrás de todo o dinheiro que possam conseguir. Uns poucos andam mais devagar, loucos ou divagadores, ou catadores de lixo. Os carrinhos de madeira não são leves... Os transeuntes fogem apressados dos monstros metálicos que fomos nós mesmos que inventamos porque não sabemos mais andar. Até dar um acidente. A multidão que se forma pra ver um acidente de carro não é muito diferente da legião de formigas que se forma em volta de um gafanhoto morto. E chegamos em casa e acendemos os fios de tungstênio e cobre. Às vezes uma sirene distante indica que houve mais uma desgraça na cidade. Acendemos a televisão instintivamente, mesmo que não queiramos ver televisão. É porque é moda, porque amanhã no trabalho vão comentar o capítulo de ontem que é o hoje amanhã. Afinal as pessoas gostam de conversar e não gostam de contas, e vão pra festas onde se esquecem das contas, bebem acima da conta e falam de assuntos que não são da sua conta. Mas isso são só pensamentos da noite de um dia difícil.
O bicho-homem se esconde na sua toca. Ainda há lá alguns buracos pra sabermos o que está acontecendo lá fora, e pras pessoas se suicidarem com toda a comodidade e segurança. À noite, servem também pra se olhar pra lua prateada, que serve pra lembrar que ainda estamos na Terra e que já houve homens cuja única preocupação era caçar antílopes e olhar pra lua. Esses instrumentos pra ver através das paredes chamam-se janelas. Janelas. Pontinhos brilhantes no céu da noite. Cada um deles é uma pessoa, uma realidade que eu não conheço. Vemos milhares de pessoas todos os dias e milhares de pontinhos todas as noites e não conhecemos ninguém. Somos apenas mais um semblante, mais uma janela. "Janela" não é uma boa palavra pra se terminar uma frase. Não tem ritmo, não é musical. Mas hoje em dia as músicas, que são mais importantes que as poesias, são muitas vezes meros amontoados de acordes permeados de gritos e convulsões, sem lógica ou uma idéia a transmitir. Servem pra que as pessoas se amem em salões chamados danceterias, se mexendo pra lá e pra cá como se tivessem maleita ou quebranto. É porque querem parecer charmosas, querem ser aceitas pela sociedade do consumismo, do imediatismo e do belo. Estamos tão consumistas que julgamos poder fazer as coisas sumirem, desaparecerem apenas porque não nos servem mais. Jogamos algo no lixo querendo que se desintegre, que os átomos desapareçam, contrariando a própria Lei de Lavoisier. Nessa sociedade imediatista, a forma vale mais que o conteúdo, o hábito faz o monge. A sociedade nos impede de sermos nós mesmos. A sociedade nos transforma em robôs. Bip, bip... você já lubrificou suas engrenagens hoje? Mas isso são só pensamentos da noite de um dia difícil.
Temos fitas em nosso videocassete e livros em nossa biblioteca com figuras de árvores, selvas, bichos e cores. E quando nos cansarmos podemos olhar pela janela e ver prédios e flores brotando do chão. Mas as flores também nascem nos gramados que os jardineiros plantam pra depois cortar. As flores, quando ficam belas, são arrancadas por brutos que também amam, pois amar é permitido e significa gostar duma pessoa do sexo oposto, uma espécie de egoísmo a dois, porque as pessoas que se trancam em suas próprias casas precisam de outras que lhes satisfaçam o desejo. E que também ouçam quando estas reclamarem do silêncio ou do gosto do purê no almoço. Afinal não somos uma ilha, embora o oceano, poluído, cada vez aumente mais. E uma ilha não tem água por cima nem por baixo, enquanto nós temos espaços vazios por todos os lados. Nas cidades se agrupam pessoas vizinhas em Tempo e Espaço e afastadas em Espírito. Alguns não agüentam a pressão e viajam ao mundo dos sonhos. Eu já não sei mais direito o que está certo e o que está errado. Mas isso são só... você já sabe o resto.
É muito fácil e confortável pensar só nos próprios problemas. Deixar pra ser socialista na faculdade e depois se acomodar pro resto da vida, enquanto pobres coitados alheios a regimes e ideologias morrem de fome. Pior cego é o que não quer esperar doador de córnea...
Os homens buscam doutrinas perfeitas como se governo fizesse milagres. Esquecem que mudanças vêm de dentro pra fora, que se você quer deixar o mundo melhor deve ficar você melhor. Mas o problema é que o sistema escraviza a todos, ele está impregnado em nossas vísceras. O egoísmo de cada um não permite um mundo de igualdade com liberdade. O futuro é tão incerto que talvez até por ironia do destino, o mundo fique melhor. Talvez hoje mesmo haja condição de uma pessoa ser feliz, sabendo que está fazendo a sua parte, que vai morrer tentando deixar o mundo melhor. Ou não. Depende da índole de cada um. Mas isso são só pensamentos da noite de um dia difícil.
Cid Justen Santana (texto selecionado no décimo primeiro concurso literário Palavra Viva, da sociedade educacional Positivo, em 1987)
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ASCENSÃO E DECLÍNIO
Quão grandiosa foi minha escalada!
Quão harmoniosa foi ela organizada!
Não, não posso pensar
no que era, no que fui, no que seria, no que sou,
nem pensarei, então, no que serei.
Subi na vida.
Doce escalada sofrida.
Ah, se pudesse voltar...
Não, eu não iria arriscar
perder tudo que tinha,
voltar a essa vidinha
mais baixa, mesquinha...
Corroído e corrompido fui
pela classe ostentosa.
Mas agora
o lugar de onde caí era mais alto:
minha queda foi do asfalto
para o macadame.
Fui filhinho de madame,
fui reizinho mandão,
mas agora o meu pão,
como o dos que pisei,
será do trigo que eu semear
e do trigo que eu colher.
Tão enorme era a plantação,
mas agora, agricultor
sem cavalo, sem tração,
minha aragem é a dor,
perdi o trator, o moedor, o arado,
perdi os empregados.
Agora sou eu o trator, o moedor,
o arado e os empregados.
Nunca tinha comido melado,
me sujei, me lambuzei,
quão maior eu fui
através dos que pisei.
No esbanjamento
era e sempre fui
um tremendo dum nojento.
Agora que o carro me deixou,
ó Deus, quão penoso é o caminho
do viajante que pegou carona
– a condução foi sua dona –
e agora tem que andar
sem carona a ajudar,
sem ninguém para chorar
pela queda silenciosa
da mão de obra ociosa.
Miséria, me larga!
Não me leva outra vez!
Minhas posses de burguês
foram e foram!
Se sofri para subir, e desci,
agora que mal aguento esta vida,
como poderei novamente emergir?
Não. Devo desistir.
A sorte não bate duas vezes
e eu voltei, de fazendeiro
a tocador de reses.
Cid Justen Santana (texto selecionado no nono concurso literário Palavra Viva, da sociedade educacional Positivo, em 1985)
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Um comentário:
muito bom!
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