terça-feira, maio 23, 2017

Um poema em duas partes

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Por onde anda o poeta?
Pela água. Pela espuma.
Por becos de buracos negros.
Pelas estrelas vermelhas.
Por onde anda o poeta?
Pela matéria escura. Pela
via jamais trilhada, pela
estrada nunca pisada,
pela área ainda incompleta.
Por onde anda o poeta?
Pelas calhas de roda
desse comboio de corda
que se chama você sabe como:
é por onde o vento fez a curva
e a água clara ficou turva,
não bebida pela onça.
Por onde anda o poeta?
Por sua própria geringonça
de insuspeita canaleta:
pensando que era privada
aquela cabina estreita
na porta escrito: não se meta.
Por onde anda o poeta?
Não é por este planeta.

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POR ONDE ANDA O POETA II: O DESGASTE

Por onde anda o poeta?
Por aqui mesmo, nesta sarjeta.
Na latrina mais nojenta,
comendo a carnificina
como se fosse caviar:
azar do poeta, sem mistifórios:
frequentamos os mesmos lavatórios,
ouvimos os mesmos discursos laudatórios,
fomos expulsos juntos dos melhores escritórios,
e estamos a sós aqui neste mesmo inferno.

Por onde anda o poeta?
Na palma da mão da amada,
que, se quiser, estala os dedos
e esmaga seu pobre estafeta:
por ali rasteja este poeta,
tenteando alguma fresta, ou retreta:
ali, ali sim está caminhando o poeta
por onde sequer lhe deu na veneta:
pela alameda larga
que vai dar numa valeta.

Por ela então anda o poeta?
Não anda: só estraleja. Ajeita
a jaqueta da dentadura na boca
e gargareja: a vida errada
está certa
menos completa
que imperfeita.

ijs

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